1) Qual é a diferença entre intolerância à lactose (IL) e alergia à proteína do leite de vaca (APLV)?
A APLV é uma reação do sistema imunológico às proteínas do leite de vaca, comum em bebês e crianças, sendo rara em adultos. Estima-se que 2 a 3% das crianças menores de 3 anos possuem APLV.
Os principais sintomas da APLV são: cutâneos (placas vermelhas na pele, coceira, descamação, etc.), gástricos e intestinais (diarreia, sangue nas fezes, intestino preso, vômito, regurgitação, cólicas intensas, etc.), respiratórios (respiração difícil, chiado, etc) e sistêmicos como a anafilaxia e FPIES (Síndrome da enterocolite induzida por proteína alimentar).
Mínimas quantidades da proteína do leite podem ser suficientes para desencadear os sintomas. Portanto seu tratamento é a dieta isenta de alimentos que possuem as proteínas do leite (leite, seus derivados e todos os alimentos preparados com esses ingredientes: bolos, tortas, biscoitos, etc.).
A IL é decorrente da falta ou da diminuição de lactase, enzima que digere a lactose (açúcar do leite). Ela é mais comum em adultos e idosos. Os sintomas apresentados são apenas gastrintestinais como: diarréia, cólica, flatulência e distensão abdominal. Os sintomas de pele, respiratórios, como ocorrem nos processos alérgicos e aqui não se manifestarão, já que o sistema imunológico não está envolvido.
A intolerância à lactose é dose dependente, ou seja, o aparecimento dos sintomas depende da quantidade de lactose ingerida e a quantidade tolerada varia de pessoa para pessoa. De uma maneira geral, não é tolerado o leite, que pode ser substituído pelas fórmulas ou leite de baixa lactose. Os iogurtes e queijos e preparações com leite, por terem um menor teor de lactose, podem ser tolerados por algumas pessoas.
2) Como suspeitar que a criança tem APLV?
Ao ingerir o leite ou alimentos que possuem as proteínas do leite, a criança com APLV pode apresentar os seguintes sintomas:
Digestivos: Dificuldade para engolir, falta de apetite, recusa alimentar, saciedade com pouca quantidade de alimento, regurgitação (golfos) frequente, vômitos, cólicas intensas, diarreia com ou sem perda de proteínas, sangue ou muco nas fezes, intestino preso, assadura na região anal.
De pele: Urticária (placas vermelhas na pele), sem relato de infecção, ingestão de medicamentos, ou outras causas; eczema atópico ou dermatite atópica (ressecamento e descamação da pele, com ou sem a presença de feridas ou secreção); coceira na pele; angioedema; inchaço de lábios e/ou pálpebras
Respiratórios: Coriza, obstrução nasal, chiado, respiração difícil e tosse, desde que não associados a infecções. Os sintomas respiratórios de forma isolada raramente estão associados à APLV, normalmente eles são acompanhados de baixo ganho de peso, sintomas digestivos ou de pele.
Sistêmicos ou gerais: baixo ganho de peso, crescimento e desenvolvimento, anafilaxia, FPIES: síndrome da enterocolite causada por proteína alimentar (choque com acidose metabólica grave, vômitos, diarreia).
É válido ressaltar que esses sintomas também podem ser fisiológicos ou estar associados a outras causas. Portanto, o fato da criança apresentá-los não caracteriza imediatamente APLV.
Estima-se que 1 a 17% das crianças menores de 3 anos apresentam sintomas sugestivos de APLV. Porém, ao realizar a investigação diagnóstica de forma correta, apenas 2 a 3% dessas crianças são realmente alérgicas ao leite.
Portanto, na vigência dos sintomas citados é preciso conversar com o médico da criança ou procurar um especialista (alergista ou gastropediatra) para que possa ser investigada e considerada a hipótese de APLV.
3) Como diagnosticar a APLV?
Alguns exames podem ser solicitados pelo médico, porém nenhum é capaz de concluir ou descartar a hipótese de alergia alimentar sozinho. Eles devem ser analisados com a história clínica e a resposta da criança à dieta.
Na suspeita de APLV, por duas a quatro semanas e dependendo dos sintomas, é preciso planejar uma dieta isenta de leite, queijos, iogurtes e alimentos que possuem as proteínas do leite.
Crianças amamentadas ao seio deverão continuar recebendo o leite materno e a mãe deverá fazer a dieta.
Se a criança já foi desmamada o leite deverá ser substituído por uma fórmula especializada.
Se nesse período os sintomas passarem, é confirmada a suspeita e o teste de provocação oral deverá ser realizado para testar o leite na dieta novamente. Se os sintomas voltarem o diagnóstico é confirmado.
Se os sintomas não passarem é preciso pesquisar:
1) Se a criança ainda está consumindo alimentos ou medicamentos que possuem as proteínas do leite.
2) Se a criança está reagindo a outro alimento ou, em caso de crianças não amamentadas, se está reagindo à fórmula usada para substituir o leite (por exemplo a soja).
3) Não é alergia ao leite a causa dos sintomas. Se após a investigação dos itens 1 e 2 for observado que está tudo certo na dieta e os sintomas ainda persistirem, pode ser que o diagnóstico não seja APLV.
4) Qual exame deve ser solicitado pelo médico para diagnosticar APLV?
Os testes alérgicos que medem a presença de IgE específica para os alimentos no sangue (RAST, ImmunoCap) e na pele (prick test) podem ser solicitados para auxiliar na investigação diagnóstica.
Porém, mesmo que o resultado desses exames seja negativo, não é possível descartar a hipótese de alergia ao leite. Isso porque algumas reações, denominadas não mediadas por IgE, não aparecem no exame de sangue e de pele.
Também não é possível confirmar o diagnóstico apenas com o resultado positivo desses testes, pois eles indicam que a criança tem hipersensibilidade àquele alimento, não alergia. A pessoa pode apresentar hipersensibilidade no teste e não apresentar reação ao consumir o alimento. Só é considerado alergia quando o indivíduo apresenta reação ao consumir o alérgeno.
Exames como colonoscopia, endoscopia, etc. são muito invasivos e não concluem o diagnóstico de alergia alimentar. Eles devem ser solicitados quando a criança não responde favoravelmente à dieta para pesquisar outras doenças intestinais.
Exames que medem a presença de IgG para alimentos (de sangue ou saliva) não são específicos para alergia alimentar. Alguns pesquisadores relatam que a forma de interpretar esses exames ainda não está correta. Por essa razão, as sociedades médicas e os conselhos de classes têm se posicionado a esse respeito enfatizando que esses exames não são indicados para o diagnóstico de alergia alimentar.
Veja a opinião de sociedades e associações médicas internacionais sobre esse tema: sciencebasedmedicine.org/igg-food-intolerance-tests-what-does-the-science-say/
Portanto, nenhum exame isoladamente conclui o diagnóstico de alergia alimentar. Alguns exames podem ser solicitados, mas precisam ser analisados junto com a história clínica e a resposta da criança à dieta.
Um exame diagnosticou intolerância à lactose. Isso quer dizer que a criança não tem alergia ao leite?
Não necessariamente. A intolerância à lactose muitas vezes é um sintoma decorrente da inflamação do intestino. Uma criança com alergia à proteína do leite de vaca que apresenta enterocolite como manifestação clínica estará com seu intestino inflamado e por essa razão pode também apresentar intolerância à lactose como um sintoma da APLV.
Esse tipo de intolerância é passageiro, mas pode aparecer no exame e não necessariamente é diagnóstico de base da criança.
É preciso ter muito cuidado com a interpretação dos exames: se a criança com APLV for tratada como intolerante à lactose ela pode não melhorar, pois muitos alimentos sem lactose possuem as proteínas do leite. O mais comum em bebês e crianças é a alergia ao leite, não a intolerância à lactose
5) Quanto tempo depois do início da dieta os sintomas desaparecem?
Depende do tipo de reação que a criança apresenta. Crianças com reações imediatas apresentam melhora significativa dos sintomas em 3 a 7 dias. Já as crianças com reações tardias podem demorar até 4 semanas.
6) Qual é o tratamento da APLV?
O único tratamento comprovadamente eficaz da alergia ao leite ainda é a dieta isenta de todos os alimentos que possuem as proteínas do leite por 6 a 12 meses, dependendo da idade e tipo de reação que a criança apresenta.
Os medicamentos ajudam a minimizar os sintomas, mas eles não tratam a alergia.
Um tratamento em estudo atualmente é o de dessensibilização. Mas ele é indicado apenas para crianças com reações mediadas por IgE e que apresentam alergias persistentes, ou seja, não melhoram até os 5 anos de idade. Ele não é indicado em todos os casos, pois existe risco e não há garantia de eficácia. Além disso, são poucos os médicos especialistas nesta área que realizam esse procedimento.
7) O que deve ser usado para substituir o leite da criança que tem APLV?
Crianças com APLV que apresentam sintomas em aleitamento materno deverão continuar sendo amamentadas e a mãe precisará fazer a dieta, pois as proteínas do leite que a mãe consome podem ser veiculadas pelo leite materno. Não é uma dieta fácil, pois a mãe já estava habituada a consumir esses alimentos, mas quando bem orientada as melhoras ocorrem. O nutricionista deve estimular e orientar a mãe a manter a amamentação.
Se a criança não apresentou sintomas via leite materno e a reação apareceu apenas após a ingestão do leite de vaca diretamente, a mãe poderá manter o aleitamento materno sem a necessidade de fazer dieta.
Caso a mãe não esteja amamentando mais, recomenda-se a substituição do leite materno por fórmulas infantis especializadas para crianças com alergia ao leite de vaca até os 2 anos.
Estas fórmulas não contêm as proteínas do leite de vaca na sua forma intacta, por isto são indicadas como substitutas do leite em casos de APLV. Os 3 tipos encontrados no mercado são: fórmulas à base aminoácidos (não alergênicas), à base de proteína do soro do leite, caseína ou arroz extensamente hidrolisada (hipoalergênicas) e à base de soja.
Como a soja também é um alimento alergênico, existem restrições no seu uso e as Sociedades Européias de Gastroenterologia e Alergia Pediátrica, a Academia Americana de Pediatria e o Consenso Brasileiro sobre Alergia Alimentar devido ao risco de alergia concomitante à soja.
8) Para uma criança com APLV, pode ser dado leite de cabra, ovelha ou de búfala?
Não, pois as proteínas do leite de cabra, ovelha e de búfala são muito semelhantes às proteínas do leite de vaca e a chance de reatividade cruzada entre essas proteínas é de 92%. Por esta razão, estes leites não deverão ser usados como substitutos do leite de vaca, uma vez que poderão causar as mesmas reações na criança.
9) Um bebê que tem alergia ao leite de vaca, pode desenvolver alergia a carne de vaca?
O risco de reatividade cruzada da proteína do leite com as proteínas da carne de vaca é muito pequeno (10%). Portanto, a carne só deverá ser retirada da dieta da criança se for confirmado que ela apresenta reação após seu consumo ou se a família optar por não consumir (exemplo: famílias vegetarianas, veganas).
10) Preciso retirar os alimentos com traços da dieta também?
Traços são ínfimas quantidades do alérgeno que podem estar presentes por contato cruzado durante o preparo e manipulação do alimento. Não são todas as crianças que reagem a traços, algumas podem tolerar sem apresentar reação.
De uma maneira geral, recomenda-se retirar os alimentos que possuem traços da dieta na fase de diagnóstico, a fim de minimizar os fatores de confusão.
Após a confirmação do diagnóstico e a estabilização da criança, os traços poderão ser testados a fim de verificar se a criança os tolera.
A restrição de traços só deverá ser mantida se a criança realmente reagir.
Restringir traços é restringir toda vida social da criança e está diretamente associado à piora na qualidade de vida, à interrupção do aleitamento materno e à presença de conflitos familiares.
A liberação da dieta deve ser feita sempre que for seguramente possível.
11) Alimentos sem lactose podem ser consumidos por crianças com APLV ?
Os alimentos sem lactose não necessariamente são isentos das proteínas do leite. Por exemplo, o leite sem lactose é um leite normal acrescido de lactase. Portanto, contém as proteínas do leite e não pode ser oferecido a pessoas com APLV.
Por essa razão a expressão sem lactose no rótulo não significa necessariamente que o alimento é isento das proteínas do leite.
Para saber se um alimento sem lactose, ou qualquer outro alimento industrializado, pode ser consumido por alérgicos é preciso ler a relação de ingredientes no rótulo. Se o alimento for isento de ingredientes que possuem as proteínas do leite, pode ser consumido.
12) Bebida vegetal pode ser oferecida para a criança com APLV?
Crianças menores de 2 anos que não puderam ser amamentadas deverão receber fórmulas especializadas para substituir o leite. Isso porque o leite é a base da alimentação nessa idade e deve conter tudo que a criança precisa para se desenvolver. As bebidas vegetais, ex: bebida à base de soja, arroz, aveia, etc. mesmo as suplementados com cálcio, são pobres em nutrientes e não substituem o valor nutricional do leite materno. O fornecimento dessas bebidas nessa idade pode acarretar prejuízos nutricionais importantes à criança e comprometer o seu crescimento e desenvolvimento.
Apesar das bebidas vegetais não serem substitutos nutricionais do leite, quando a criança tem mais de 2 anos, come bem todos os tipos alimentos (frutas, verduras, legumes, arroz, feijão, etc) e está dentro do peso, pode-se até oferta-las como uma bebida a fim de variar o cardápio. O smooth à base de bebida vegetal e frutas é uma ótima opção de lanches e café da manhã para mães que amamentam e crianças maiores. Mas, mesmo assim, é necessário fazer uso de um suplemento diário de cálcio e realizar acompanhamento nutricional periódico para adequar a oferta de proteínas, vitaminas e minerais na dieta.
As bebidas vegetais também podem ser usadas em preparações para crianças maiores e mães que amamentam.
Com relação à soja e às castanhas é preciso certificar-se antes se a criança não tem alergia concomitante a esses alimentos.
13) É verdade que a soja faz mal para a criança?
Existe a hipótese de que o consumo de soja em excesso por crianças possa acelerar a puberdade e a primeira menstruação das meninas e comprometer a produção de espermatozoides dos meninos, pois as isoflavonas da soja são semelhantes ao estrógeno (hormônio feminino).
Mas isso ainda é uma hipótese. Não temos estudos que comprovem o quanto de soja é suficiente para acarretar tais efeitos e nem o tempo necessário de consumo.
Os estudos realizados até hoje não encontraram alterações significativas.
Por precaução, quando a criança tem alergia ao leite e consome soja, estamos orientando que as famílias evitem os demais alimentos à base de soja - além da fórmula para substituir o leite. Se o uso de soja for prolongado, recomendamos uma avaliação periódica com um endócrino pediatra para verificar se os níveis séricos de hormônios e a maturação sexual da criança está evoluindo como esperado para a idade.
Renata Pinotti
@alegria_alimentar
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